O Filho do Relege, o Mariposa e a Moto
- luís menna barreto
- 26 de mar.
- 6 min de leitura
Atualizado: 16 de mai.

Se havia uma coisa que eu jamais achei que julgaria, no Marajó, quando cheguei por lá, era um acidente de trânsito!
Eu já contei, em uma crônica de três partes, que quando cheguei não havia carros. Foi a crônica "O Presidente, o Manobra e a Ambulância”. Pois é: havia o caminhão do lixo (um velho caminhão dos anos 70), algumas motos quase sucateadas, sem qualquer documentação regular que, pilotadas por pessoas sem habilitação e sem qualquer item de segurança, faziam serviços de moto táxi… e havia a ambulância!
O motorista da ambulância era o Manobra, que, como contei naquela oportunidade, era chegado numa cachacinha ou cerveja, e passava os dias no açougue do Retalho, tomando umas e jogando bilhar. Reza o conhecimento popular, que o manobra jamais havia levado algum doente do hospital ao trapiche ou vice-versa, porque como o navio encosta na cidade apenas pelo tempo de embarque e desembarque, o Manobra nunca conseguia fazer a ambulância funcionar a tempo do transporte, e, sendo o hospital a menos de quinhentos metros do trapiche, acabavam transportando o doente em maca ou em um carrinho de mão dos carregadores da beira.
Pelo que sei, uma das poucas vezes que a ambulância foi realmente útil, foi para transportar o Presidente do Tribunal de Justiça do aeroporto (não regularizado e com pista de terra) até o Fórum, quando ele foi visitar a cidade. Mas, como muitas vezes o destino prega peças, aconteceu: o Mariposa (aquele mesmo que deixou a Constante para ficar com a Pequena e depois teve de esconder-se no banheiro pra não levar marretada da Pequena*), comprou uma moto em Belém. Uma Honda Bross, vermelha, com dois anos de uso, apenas. Veio lavada com pneus quase novos, uma beleza! Mariposa trouxe no navio que vinha de Belém pra Breves, e encostou na cidade, única parada além do destino final, perto das 3h da madrugada.
Nesse mesmo dia, o filho do Relege, vereador de muitos mandatos na cidade, foi caçar e, não se sabe em quê circunstâncias, apareceu com um tiro no tornozelo. Não ficou muito esclarecido se foi ele próprio que atirou no pé, ou se o tiro foi do Fobia, que estava caçando com ele. Mas, enfim, o Relege, sabendo do ferimento por arma de fogo em seu filho, ficou louco e queria a todo custo levar o moleque para um hospital maior! O rapaz chegou no hospital, perto de 23 horas, trazido lá do Canaticú, um rio distante. Daí, que o navio que passava de Breves para Belém, já havia saído. Então, a solução era colocar o guri no navio que passaria na madrugada de Belém em direção a Breves para ser tratado no hospital regional de Breves. Foi aí que o Relege foi atrás do Manobra que, claro, estava no açougue do Retalho, tomando uma.
O Relege já havia, muitas vezes, tomado umas com o Manobra, e jogado bilhar a noite toda… mas quando o caso deu-se com seu rebento, quase saiu às vias de fato com o Manobra por ele estar bebendo nos "horários de navio", que era quando o Manobra deveria estar de plantão! Foi então que, por volta de meia noite, o Manobra estava de "castigo" no banco de madeira na portaria do hospital, e o Relege, com sua autoridade de vereador, fez o motor da ambulância ficar ligado até o navio encostar!
Quando o navio apontou na curva do rio perto das 3 horas da madrugada, deu-se a natural muvuca: os padeiros pegaram os cestos com pão quentinho para vender aos passageiros do navio que continuariam a viagem até Breves, o pessoal que iria embarcar foi para beira do trapiche, quase se empurrando, os carregadores estavam, já, pendurando-se nas "escoras" (imensos troncos de madeira, fincados no rio na vertical, onde amarram a corda de atracação do navio) prontos para pular dentro do navio antes mesmo de encostar, e conseguir algum freguês para carregar a bagagem. O Marra, “assessor” do Relege, que estava cuidando o navio chegar, foi correndo avisar e colocar o moleque na ambulância. O percurso não tem segredo. Uma linha reta do hospital municipal até o trapiche.
A "plataforma" ou “rampa de embarque” no navio é uma tábua de uns 50 cm de largura que o pessoal arrasta do trapiche até o navio. Daí, quem entra e quem sai, vai-se equilibrando em um vão de quase dois metros, tendo o rio 3 metros abaixo.
Retirar a moto de dentro do navio nem sempre é uma tarefa fácil. Especialmente, se a maré esta baixa, porque daí, a "rampa" fica muito inclinada. Por sorte, a “agua estava grande” e a expectativa era da moto sair sem dificuldade.
Embrólio deu-se porque bem na hora da parte mais delicada do processo de desembarque da moto, em que conseguem colocar a moto sobre a “plataforma”, a maca com o filho do Relege estava para entrar. Numa ponta a moto, na outra, a maca! O Mariposa gritando de dentro do navio, que levaria mais tempo a moto descer da plataforma novamente, do que chegar ao trapiche! O Relege, gritando do trapiche pra tirar a moto que paciente tem preferência!
— Égua, Mariposa, volta com essa moto, porque paciente com urgência tem preferência!
— Deixa a moto passar que é mais rápido! E desde quando chumbinho do pé de abestado é urgência?
Meia maca na tábua, meia moto na tábua, o enfermeiro equilibrando para não deixar a maca cair, os dois carregadores equilibrando a moto, Mariposa quase empurrando do navio para o trapiche, Relege quase empurrando do trapiche para o navio!
“uuuuuuóóóóóóóóóóóóóóóóó”… Era o primeiro apito do navio. São três apitos. No terceiro, o navio zarpa. O Canhão, marujo experiente, já estava desfazendo os nós da atracação e soou a sineta que avisa ao operador de máquinas para movimentar o motor!
A água começou a mexer forte por baixo do trapiche e até a prancha arrastou no chão com o navio movendo-se centímetros. A gritaria aumentou! O pessoal da moto conseguiu colocar as duas rodas da moto na tábua. O Relege não se deu por vencido: empurrou seu pessoal e agora o enfermeiro da frente da maca já estava com a roda da moto entre os joelhos.
“uuuuuuóóóóóóóóóóóóóóóóó”… segundo apito. Mais um e o navio sairia. Faltava apenas uma amarra e o Canhão levaria menos de um minuto pra desfazer.
A essa altura, o trapiche estava uma confusão. Todos gritavam.
— Tira essa desgraça daí, lesado! — gritava o Relege!
— Lesado é esse teu filho abestado, que atira no próprio pé! Sai da frente, escomungado!
E o pessoal, que começou a aglomerar gritava junto e, claro, torcendo para alguém ou alguma coisa cair na água!
A qualquer momento soaria o último ap….
“uuuuuuóóóóóóóóóóóóóóóóó”. O Comandante não quis nem saber. Amarra desfeita, o Canhão jogou o cabo para dentro! Todos na expectativa. Nervos à flor da pele! Gritaria…
…
Vou resumir: barulho de algo caindo na água: foi a prancha, aquela táboa comprida que faz as vezes de ponte entre o trapiche e o navio, que com o movimento escorregou pelo trapiche, quase puxada pelo navio, e caiu! Todo mundo correu achando que tinha sido o filho do Relege ou a moto. Teve gente que se atirou na água para tentar ajudar!
Mas a verdade é que no desespero, o Mariposa e os carregadores conseguiram puxar a moto para dentro do navio, novamente. E ele foi parar em Breves, depois de mais 4 horas de viagem, e teve de esperar até à noite para o navio fazer o caminho de volta!
Quanto ao filho do Relege, ele mesmo deu um pulo da maca e saiu saltitando feito Saci no trapiche, antes da prancha cair! Depois, foi caminhando de volta para casa, chateado com o pai, o Relege, por ter passado essa vergonha. A ambulância ainda estava ali na frente do trapiche… mas o Manobra já estava no açougue do Retalho com um copo na mão!
…
Hein? O acidente de trânsito que eu falei na primeira linha? Ah!, é… mas vou contar outro dia!
Luís Menna Barreto, em 20 de maio de 2019
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