Meia Banda de Porco e o Caso do Promotor com o Torneio e as Fadas
- luís menna barreto

- 10 de fev.
- 7 min de leitura
Atualizado: 16 de fev.

— Ele roubou meia banda do porco, doutor.
— Não roubei nada! Tava morto peguei o que era meu!
Não, eu não estava na sala de audiências. Nem no fórum! Estava recém saindo do barco, com a mochila nas costas, depois de mais de 4 horas navegando de uma cidade pra outra do Marajó.
Os dois que estavam discutindo haviam ido até a sede do judiciário (ou indo “lá no Termo”, como eles chamavam por lá), muito exaltados. Lá, procuraram o Promotor, mas este, que havia chegado dois dias antes junto com o Defensor Público, estava envolvido com o problema das “Fadas”, e pelo jeito iria demorar. Daí, que o Goela, que também havia ido antes, disse para os homens do caso do porco:
— Parem com isso… não esquentem a cabeça! O juiz tá chegando daqui há pouco no municipal. — (trapiche municipal).
Foi apenas isso que o Goela disse. Na verdade, ele sabia que dizendo isso, os dois iriam lá para o trapiche já discutindo, esperar eu chegar. E quando eu reclamasse, ele iria dizer que tudo o que fez, foi avisar que eu chegaria; não que era pra eles irem até lá! Mas, enfim, é o Goela, né?!
A viagem havia sido tranquila e demoramos porque o Fumaça, piloto do barco, teve que dar voltas para ir bem pelo canal, porque a “água não tava grande” e, se fôssemos por cima da praia, poderia encalhar. Quando a gente sai do “furo de Breves”, no Marajó, para atravessar a baía para o lado do continente, atravessando o rio Pará, para ir até a parte de trás da pequena ilha que é onde fica a sede da cidade de Bagre, tem muita praia quando a maré do rio (sim, rio tem maré, no Marajó!) está baixa. Quando a “água tá grande”, o barco passa por cima da praia e economizamos até quase 1 hora. Se a “água tá pequena”, tem que ir pelo canal, e aí, só quem conhece o local, porque as indicações são apenas umas poucas varas cravadas no rio, que só quem tem o olho acostumado a ver na lonjura da água sem fim, que consegue identificar.
Pois quando cheguei, assim que comecei a caminhar na prancha para desembarcar para o trapiche, fui abordado pelos dois que discutiam sobre um porco, e vieram logo falando comigo como se eu soubesse a história toda e tivesse passado a manhã inteira ouvindo as razões de um e outro:
— Ele roubou meia banda do porco, doutor”.
— Não roubei nada! Tava morto peguei o que era meu!
— Hein?! Bom dia para vocês também!, — falei para ver se eles se tocavam que eu não estava entendendo nada e estava chegando agora!
— Bom dia, doutor. Pois ele roubou meia banda do meu porco, doutor. Ele tem que devolver!
— Bom dia, doutor, roubei nada!
Socorro!
Já havíamos saído do trapiche municipal, já estávamos na praça na frente da igreja, indo para o “Termo", e os dois não paravam de falar, fazendo com que eu nem percebesse toda a calma da cidade, naquele horário de pouco mais de 14 horas.
Virei para os dois e falei:
— Acalmem-se os dois! (Tudo bem, eu não falei “acalmem-se”, eu falei “se acalma aí, caramba!” mas não quis escrever errado). Lá no judiciário a gente resolve!
— Tá bem, doutor, lá o senhor vai mandar ele me devolver a meia banda do porco!
— Devolvo nada, doutor, lá no judiciário o senhor vai ver que ele estava me devendo!
E assim foi! Não adiantou nada eu dizer para esperar chegar no Termo.
Quando chegamos (sim, quando nós TRÊS chegamos), o Goela estava na porta, com um sorriso de quem está rindo por dentro, sabendo da confusão que havia aprontado!
Eu havia ido porque combinei com o promotor e com o defensor público, fazermos um mutirão de processos criminais do Juizado Especial, que são aqueles pequenos delitos que, na prática, não deixam ninguém preso, como brigas, rixas, e pequenas confusões entre vizinhos e amigos que bebem demais.
Eu estranhei aqueles dois terem ido esperar-me desde o trapiche. Eu sabia que devia ser coisa do Goela, mas, mesmo assim, quando tem promotor ou mesmo defensor público na cidade (e os dois estavam lá há dois dias) as pessoas sempre correm para eles com qualquer problema. E o promotor que estava lá não era qualquer um e nem era do tipo que foge dos problemas. Já falei dele outro dia, e prometi que não ia dizer que o nome dele é Gerson!
Chegando no Termo, perguntei logo pelo promotor. Mas vocês tem que entender que todo o caminho do trapiche ao Termo, e mesmo enquanto eu falava com o Goela perguntando pelo promotor, os dois continuavam num tal de “roubou banda do porco, não roubei, roubou sim, tu estavas me devendo”!
— Fala, Goela! Tudo certo por aqui? Foste tu que mandaste esses dois atrás de mim?
— Claro que não doutor! Só falei que o senhor estava pra chegar!
— E o promotor?
— Tá com as “Fadas”, doutor.
Enruguei a testa num universal gesto de “diga mais”.
— O torneio de futebol começa hoje, doutor, e a prefeitura não deixou o time das “Fadas” ser inscrito. Tá a maior onda lá na promotoria!
As “Fadas" são os gays da cidade. Para uma população do tamanho de Bagre, até que tem bastante… mas fazem barulho como se fossem ainda mais! O mais interessante é que convivem praticamente sem homofobia, com toda a população, sem precisarem esconder-se, nada! Entre as “Fadas” tem professores, servidores públicos, pessoas inseridas na comunidade de maneira completamente normal. Apenas fazem parte das “Fadas” e pronto!
Daí, que foi um reboliço a proibição do time das “Fadas” ser inscrito no torneio. E foram todas, ou quase todas falar com o promotor (vou usar o gênero feminino porque estou usando o termo “Fadas”, sem qualquer conotação pejorativa!).
Como o promotor não é de meias soluções, quando começou o falatório todo, ele não teve dúvidas: bateu na mesa, pediu silêncio, e chamou o Goela, que, em ocasiões assim, acaba virando um “faz-tudo”.
— Goela, chama agora o secretário de educação aqui! — No município, o secretário de educação cuida, também, do esporte e cultura.
O Goela nem disse nada, e foi-se!
Ele sabia que quando o promotor chamava, era sério. Teve uma vez que um ex-vereador estava sendo processado, e houve várias audiências frustradas, porque ele nunca comparecia, apresentando sempre atestado médico. Numa dessas, em que a audiência era pela manhã, quando o promotor estava indo para o Termo, viu o ex-vereador na frente de uma loja na beira. Daí, quando chegou na hora da audiência, o Goela chamou o ex-vereador e ele não apareceu, enviando um atestado médico.
Acho que era o terceiro atestado médico no mesmo processo. Olhei, e alcancei o atestado para o promotor. O promotor, na hora:
— Goela, vem aqui. Pega esse atestado, leva lá na casa dele agora e fala que ele tem três opções. Mas presta atenção pra decorar as três, que vou falar só uma vez: ou ele vem, ou ele vem, ou ele vem!
Menos de dez minutos depois, o ex-vereador apareceu lá, com um cabide de soro e a agulha no braço! Nunca fiquei sabendo o quanto fora verdade e o quanto fora teatro! Há quem diga que ele realmente passou mal… depois que recebeu o recado do promotor!
Daí que quando o promotor falou para chamar o secretário de educação, o Goela foi faceiro!
Em seguida, o secretário chegou na salinha da promotoria, e entrou sob vaia das “Fadas”, afinal, ele quem assinara a proibição de que entrassem no torneio.
No meio do “bom dia” que o secretário tentou falar, o promotor já foi dizendo:
— Ou as “Fadas” jogam, ou não tem torneio. Obrigado. Bom dia.
Simples assim!
Enquanto isso, eu finalmente conseguia sentar-me para dar ouvidos aos dois brigando pelo porco.
— Sim, explica o que houve, Tesoura. — O Tesoura era o dono do porco, e tinha esse apelido, não porque era criador de porco, claro, mas porque era cabeleireiro!
— Doutor, o Papel de Xerox roubou meia banda do meu porco!, e eu quero de volta.
— Roubei nada, doutor. Ele tava me devendo a meia banda, pode perguntar pra ele.
Não cheguei a perguntar, mas o Tesoura foi logo falando:
— Eu devia, doutor, mas o combinado não era esse. Eu perdi na aposta da bola, mas eu ia dar só quando o porco morresse.
— Mas o porco morreu, doutor.
— Morreu nada, tu que mataste!
— Eras! Pois se eu matei, ele morreu. Doutor, eu lhe juro que matei ele primeiro, e depois tirei minha meia banda. Não ia fazer isso com o bicho vivo!
— Hein?
Pois é… mas enfim, o dia estava animado! Ouvi os dois mais um pouco e ficou por isso mesmo. O porco já estava morto, e a meia banda paga! Fazer o quê?!
Depois de mais um tempo, entre problemas de porcos, galinhas e vizinhos, não necessariamente nesta ordem, chegaram as “Fadas" para falar comigo.
Fiquei estranhando, porque dificilmente um problema levado até aquele promotor, não era resolvido.
Mas o assunto era outro:
— Doutor, tem o nosso baile na semana que vem. Podemos contar com a sua ajuda?
Fiz minha cara de “hein”, sem dizer nenhuma palavra.
— A gente sempre pede colaboração para as autoridades. Nosso ídolo, o doutor promotor, já ajudou.
Bem, acabei contribuindo.
Depois disso o dia transcorreu normal, fizemos as audiências, resolvemos o que dava para resolver e, no final do dia, estávamos indo para o hotel, eu, o promotor e o defensor público, que resolveu parar numa banca de DVD’s piratas. Eu fiquei uns passos afastado, e o promotor ficou conversando comigo. Depois, o promotor também foi em direção à banca. O vendedor, que era uma delas, e já sabendo que o promotor havia resolvido o problema do torneio, quis agradar o promotor.
— Ô doutor, nem tem como agradecer. Obrigado pelo que o senhor fez por nós. Olhe, para o senhor, eu ofereço pelo mesmo preço qualquer um desses filmes aqui, que são especiais. — E tirou de baixo da banca uma caixinha com DVD’s que não estavam expostos. De longe, eu não vi o que era.
Só vi o promotor saindo da banca e xingando o vendedor. Estranhei! Depois fiquei sabendo: o vendedor achou que o promotor também fosse “Fada” e por isso que tinha ajudado… então ofereceu filme de pornô gay para o promotor!
Báh, foi quase uma semana que eu e o defensor público ficamos tirando onda com o promotor.
Mas o problema foi na semana seguinte, quando voltamos na cidade e era o dia do baile das “Fadas”.
Eu notei que o pessoal da cidade estava me olhando um pouco mais do que de costume e quando eu passava o pessoal olhava e cochichava entre si alguma coisa.
Pois quando passamos à tarde na frente do local onde seria o baile das “Fadas”estava lá a faixa e o cartaz:
“Baile das Fadas. etc, etc, etc… apoio, Doutor (meu nome)!
Dá pra imaginar a onda que o promotor tirou? Juiz gaúcho, apoiando o baile das “Fadas”?
Luís Menna Barreto, em 11 de março de 2017




Nem chegou já começa o bafafá nesse Marajó, de juntar pegar o porco fazer um churrasco chamar o promotor também... Eu rir do promotor viu rsrs ele não gostos kkk
Muito bom!! Dr e suas ótimas histórias vividas no marajó. 👏👏