Bem Ali, Seu Espirro e os Exames
- luís menna barreto

- 4 de mai.
- 3 min de leitura

— Doutor, vou bem ali.
Não sei se vou conseguir explicar direito: “bem ali” é algo muito misterioso para quem não é nativo. Demorei pra ter alguma noção. É mais ou menos assim: quando alguém diz “vou bem ali” está simplesmente dando a informação que vai sair, não quer dizer onde e não sabe dizer que horas voltará. Aliás, quem é daqui, jamais pergunta “onde?” ou “demoras?”, se a informação é vou “bem ali”.
Mas, naqueles tempos, chegado há pouco tempo no Estado do Pará e menos tempo ainda no Marajó, eu não sabia e cometi a quase heresia:
— "Ali" onde, Goela?
Esse é o momento do “hein?”, mas o “hein" é meu, não do Goela, que estranhou mas respondeu a única resposta que entendeu possível para aquela pergunta despropositada:
— Bem ali!
E foi saindo.
Respirei fundo. Mas eu estava, ainda, descobrindo como funcionava o ritmo da vida por lá. Daí, pra manter a autoridade, quando o Goela já devia estar lá no meio da praça, falei com tom grave na voz:
— Vai mas não demores!
Dali um pouco, estranhei o silêncio incomum no Fórum. Não que seja um lugar muito movimentado, mas sempre tem alguém conversando no corredor pra fugir do sol da rua, ou mesmo alguma movimentação na praça, mas tudo estava silencioso. Acabei de examinar o último processo que estava na mesa e, lembrando que o Goela havia ido em qualquer lugar que eu não sabia onde era, chamei o Barganha. Nada.
Insisti:
— Bargaaaaaaanha!
Nada.
Com alguma irritação e, confesso, curiosidade, levantei e fui procurar alguém. O corredor estava vazio. A sala do Ministerio Público, vazia. Na salinha da distribuição, onde a Tutela recebe as iniciais e, invariavelmente alguma fofoca está sendo contada… nada.
Daí que olhei pra porta e a D. Boneca, a “faz-tudo” do fórum, veio entrando devagar.
— D. Boneca, onde tá todo mundo?
— Bebendo o Espirro, doutor.
Hein?!
Como eu ainda não tinha muita intimidade com a D. Boneca, nem tentei interpretar. Voltei para o gabinete e decidi esperar pelo Goela.
Pouco antes do meio dia, o Fórum começou a ficar com a agitação normal e pude distinguir, entre os barulhos, o Barganha e a Tutela retornando. Em seguida, ouvi a voz, sempre alta e com entonação animada, do Goela.
— Goelaaaaaaa!
— Pois não doutor?
— Qual é dessa história de “beber espirro”?
— Não, doutor, é que o Espirro, aquele senhor que teve aqui outro dia, querendo tirar a certidão de nascimento, levou farelo. Tava todo mundo bebendo o morto, que o enterro tava marcado pra 11 horas.
Eu me lembrava do tal Espirro. Ele apareceu outro dia querendo registro de nascimento que nunca havia sido feito. Nascido e criado numa ilha do outro lado do rio, nunca havia sido registrado:
— Não tem certidão de nascimento até essa altura da vida, seu Espirro? — eu perguntei.
— Nunca precisei, doutor. Mas agora fui atendido pelo doutor no hospital e tenho que fazer um tal exame que nem sei. Mas exame só com documento doutor.
— Nunca foste em médico antes? Nunca fizeste exame?
— Nunca precisei, doutor. Saúde sempre foi boa, mas agora o mijo tá saindo vermelho.
— E como é seu nome?
— Espirro!
— Não, não pode ser apelido, tem que ser nome. Nome e sobrenome. Como é?
— Ah, veja um aí, doutor. Não faço caso de nome, não. Sou o último dos 12 irmãos, doutor, e a mamãe sempre dizia que foi fácil me parir, que saí como um espirro. Daí, chamam assim pra mim desde gitinho.
Eu lembro que segurei o “hein" e tentei, ainda, pelo nome dos pais.
— Então me diga o nome dos seus pais.
— Pra minha mãe, chamavam de Preta, e pai não tenho não, que sou filho do boto.
Por ali eu desisti. Alguém que não tem nome, imagine descobrir a data do nascimento?
O que sei é que encaminhamos o Seu Espirro para o Ministério Público que fez o pedido com todos os dados (que eu confesso, não questionei muito se eram exatos ou não) e seu Espirro ganhou até nome!
Pois foi então, que Seu Espirro morreu. Comentei com o Goela, quase de forma retórica, e sem esperar resposta:
— Coitado. Os exames não deram bons resultados, então…
Mas o Goela não deixou o assunto morrer:
— Ah, doutor, diz que tava tudo bem. O problema é que o médico viu os exames e deu duas notícias pro Espirro!
— Que notícias?
— O doutor disse que pelo resultado dos exames, o Espirro ia morrer de velho!
— Mas então, Goela, o que deu de errado?
— A segunda notícia, doutor!
— E qual foi?
— Que o Espirro tava velho!
Por Luís Menna Barreto, em 23 de maio de 2018




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