top of page

A Confissão do Mudo, o Padre e a Marmita

Atualizado: 9 de nov.

A Confissão do Mudo, o Padre e a Marmita
A Confissão do Mudo, o Padre e a Marmita

O Mesa Branca havia emudecido! De uma hora para outra! Ele havia ido até o único orelhão da cidade*, e, quando colocou de volta o fone no gancho, estava pálido, sério… e calado!

Todo ficaram se perguntando o que poderia ter havido, especialmente porque o orelhão há muito não funcionava, embora o Mesa Branca todos os dias fosse até lá depois da sesta, colocasse a ficha, e começasse a falar e (aparentemente) escutar. No final, a ficha era sempre devolvida e ele voltava no dia seguinte!

Evidentemente, os amigos e familiares perguntavam com quem ele falava tanto, mas ele se limitava a responder:

— Pessoas… pessoas!

— E o que tu tanto falas, Mesa Branca? — Perguntavam todos: o Retalho, o Mariposa, o Manobra, o Goela, a Pipoca, enfim, todo mundo tinha curiosidade, ao quê, o Mesa Branca, caboclo iletrado e de poucas luzes, respondia:

— Alhures…alhures!

Ele falava isso com um certo ar de superioridade e displicência, e o fato é que ninguém retrucava. Muito certamente, porque ninguém sabia o que significava “alhures”… provavelmente, nem ele mesmo soubesse.

Mas, enfim, houve esse dia, em que o Mesa Branca saiu pálido, sério e calado do orelhão!

Caminhou devagar até o açougue do retalho e balançou a cabeça com o queixo para cima, pedindo uma cachaça. O Retalho entendeu e, naquele momento, não perguntou nada. O Goela e o Manobra, que estavam ali, também não perguntaram, tal era o semblante sério do Mesa Branca. Virou de uma vez o copo, colocou no balcão e saiu sem dizer uma palavra! O Retalho limitou-se a pegar a caneta de trás da orelha, pegar o caderninho pendurado por um barbante no teto, rente à parede e anotar a dose na conta do Mesa Branca. E assim, sério, chegou em casa! Olhou com alguma gravidade para a Pipoca (Doce), que preferiu nem perguntar. Fora deitar quieto naquele dia, e nem deitou-se na mesma rede que a Pipoca. Não teve saliência naquela noite. Atou a rede fora de casa, entre um açaizeiro e a perna manca da varanda.

No dia seguinte, quando acordaram, a Pipoca logo disse para o Mesa Branca ir buscar um pão para preparar a merenda dos filhos, para levar para escola. O Mesa Branca não falou nada, e foi. Os filhos, antes de ir para escola, pediram a bênção, e o Mesa Branca limitou-se a beijar as mãos dos dois garotos e balançar a cabeça para cada um.

— Mãe, o pai ficou mudo?

— Pelo jeito… — Respondeu Pipoca, ainda sem levar a sério.

Mas com o passar dos dias, a coisa mostrou-se séria e já havia comentário: Mesa Branca emudeceu!

Acontece que o Mesa Branca era muito devoto, e sempre ajudava na Igreja. Participava da Missa do domingo e ajudava a puxar as músicas, com um coral improvisado, composto por ele, a Véu de Noiva e a Dona Mocinha. Na hora da Missa das 7h do domingo, a Igreja estava mais cheia do que o normal, porque como havia se espalhado a notícia da mudez do Mesa Branca, alguns ficaram curiosos para ver se ele iria cantar. Então, alguns minutos antes do início, lá chegou o Mesa Branca e pegou seu lugar no “coral”, no primeiro banco do lado direito do altar. O Padre começa a procissão da porta até o altar e inicia o canto:

“Eis-me aqui Senhor/ Eis-me aqui Senhô-ô-ô-or…”

Lá estava o Mesa Branca. No meio das duas companheiras de coral, balançando a cabeça como sempre fazia… … mas sem emitir um som sequer! Apenas as duas vozes femininas se faziam ouvir.

E assim foi durante toda a missa. Toda a assembléia passou a olhar mais o Mesa Branca do que o Padre! Vendo isso, o Padre irritou-se e, ao final, foi falar com o Mesa Branca. Muitos fiéis não arredaram pé.

— Edinelson (era o nome do Mesa Branca. O Padre recusava-se a chama-lo pelo apelido, considerando a origem não católica, mas isso é história para outra crônica). — Por que não falas?

Silêncio. Os olhos sérios fitando o Padre.

— Foi promessa?

Cabeça de um lado para outro, em um universal gesto de negação.

— Foi pecado?

Ombros levantados e cabeça ligeiramente para o lado! Gesto preciso para traduzir um impreciso “talvez”, “quem sabe”. Gesto de quem “acha" mas não tem certeza… ou não quer admitir algo que sabe.

E assim o Padre conduziu o Mesa Branca para o confessionário. Metade dos fiéis não haviam arredado pé da igreja e continuavam acompanhando o desdobrar dos acontecimentos.

O padre entrou em seu reservado e o Mesa Branca ajoelhou na parte externa.

— Queres confessar teus pecados, meu filho?

Mesa Branca balançou a cabeça na vertical.

— Quais são seus pecados?

Silêncio. Mesa branca olhava o Padre, pelos “furinhos" de comunicação do confessionário, com olhos suplicantes. O Padre esperou e nada. O Mesa Branca continuava ali, quieto! E o Padre encontrou-se em um dilema: para a absolvição, era preciso que o Mesa Branca confessasse os pecados, falasse! Mas ele não falava. E se fosse verdade a mudez? E se o Mesa Branca não pudesse mesmo falar? O que faria? Não poderia chamar alguém para traduzir eventuais gestos e sinais, porque quebraria o sigilo da confissão. Escrever poderia ser uma saída… mas o Mesa Branca não lia nem escrevia. Sugerir pecados para o Mesa Branca fazer gestos de sim e não, poderia levar tempo demais, afinal a lista de pecados que o Padre aprendeu em mais vinte anos de confissões levaria dias para desfiar. Mas e agora? Negar a absolvição para o Mesa Branca, seria o mesmo que condenar todos os mudos. O Padre nunca pensara nisso. Nunca recebera confissão de mudos. Como eles se confessavam?

Na dúvida, e conhecendo o Mesa Branca, o Padre optou por absolve-lo:

— Meu filho, pense nos seus pecados. E balance a cabeça quando pensar em todos.

Demorou uns poucos instantes. O Padre calculou que não haveria mais de cinco pecados pensados e cometidos pelo Mesa Branca pelo pouco tempo que levou. Logo, o Mesa Branca levantou os olhos e baixou uma vez a cabeça, com gravidade como quem avisa: “terminei”.

O Padre pensou um pouco, deu-lhe como penitência, rezar duas Salve Rainhas, quatro Pai Nossos, e vinte Ave Marias. Por via das dúvidas que rezasse um Creio no Final!

A notícia espalhou-se rápido: o Padre havia recebido a confissão do Mesa Branca e o absolvido!

A Marmita adorava uma festa e não resistia em fazer saliência com algum caboclo de boa conversa! Nem todos solteiros, ela sabia, mas é que havia um fogo dentro dela! Naquela mesma tarde, foi falar com a Pipoca:

— Empresta a ficha do telefone, Pipoca.

— Tá doida que vou pegar a ficha do Mesa, mana?

— É rapidinho, eu já devolvo!

— Não posso, dá teus pulos! E aquele orelhão nem funciona, pequena!

— Para o que eu preciso, vai funcionar Te dou um litro de açaí se me emprestares um instante.

Isso balançou a Pipoca. Açaí é açaí, não se pode desprezar.

Com cuidado, na hora da sesta, quando o Mesa Branca estava dormindo na rede, a Pipoca pegou, com muito cuidado, a ficha que ele guardava em uma lata de café, junto com o terço e resto do dinheiro do seguro defeso da colônia de pescadores, que indeniza o tempo que os pescadores não podem pescar, para os peixes procriarem.

A Marmita saiu saltitante com a ficha e voltou em menos de vinte minutos! Não disse uma palavra, devolveu a ficha e entregou o litro de açaí para a Pipoca.

A missa das 19h foi estranha: igreja lotada, mas, à exceção de uns três ou quatro que respondiam, quase todos estavam calados… MUDOS!

A despensa da casa da Pipoca estava lotada de açaí, camarão, farinha…

… e, no final da missa, havia uma fila de mudos no confessionário!


Luís Augusto Menna Barreto

9 de novembro de 2025


Comentários


bottom of page