Entre a Xícara e o Vento*
- luís menna barreto

- 8 de out.
- 5 min de leitura

Texto de Jamie Schröeder
As tardes na varanda sempre tiveram gosto de memória. O vento brincando com os fios de cabelo, o sol se derramando preguiçoso sobre as telhas, e o som distante de um cachorro latindo em algum quintal vizinho. Era ali, naquele pequeno pedaço do mundo onde o tempo parecia mais gentil, que ela escrevia.
A cada fim de tarde, uma nova carta.
O ritual era simples: caneta azul, folhas com bordas floridas, e uma xícara de chá de hortelã. Escrevia com a leveza de quem relembra, mas com a intensidade de quem nunca esqueceu. As palavras dançavam pela página como se tivessem esperado por anos para sair. As cartas não tinham destinatário claro, mas falavam com um amor doce, quase apaixonado. Alguém do passado? Um amor perdido? Um amigo distante?
"Hoje a chuva caiu devagar, como se soubesse que você não está aqui para me ver dançar sob ela. Lembra de quando a gente corria descalços pela varanda molhada?"
A leitura das cartas revelava um carinho profundo, uma intimidade que transbordava pelas entrelinhas. Com o passar das páginas, no entanto, algo mudava. As memórias descritas não pareciam de outra pessoa. As lembranças eram suas. As dores, suas. As promessas, suas também. E, pouco a pouco, o leitor percebia: aquelas cartas eram para ela mesma.
Era uma tentativa de resgatar-se. De lembrar-se. De reunir os pedaços que os anos, os silêncios e as perdas haviam espalhado. Cada frase era um espelho, cada palavra, uma busca. Não era sobre um outro que partiu, mas sobre ela mesma, que havia se perdido e agora tentava voltar.
Na terceira carta, por exemplo, ela escreveu:
"Hoje senti saudade de mim. Da menina que sonhava com janelas abertas e cometas cruzando o céu. Onde foi que deixei essa parte de mim? Em qual esquina da pressa me esqueci de ser leve?"
E na quarta:
"Tem dias em que o silêncio da casa pesa mais que qualquer grito. Mas aqui, nesta varanda, parece que o mundo inteiro respira comigo. Talvez, se eu me ouvir com carinho, eu volte a ser inteira."
O tempo passou. As cartas se acumularam dentro de uma caixinha de madeira. Algumas foram deixadas sob livros, outras presas com imãs na geladeira velha da cozinha. Era como se cada cômodo da casa merecesse uma parte de si — uma lembrança, um afeto, um sussurro.
Na sétima carta, ela desabafa:
"Hoje chorei sem saber o motivo. Talvez não fosse tristeza, mas apenas saudade de me abraçar. Há tanto tempo não me ofereço um gesto de ternura... Não é sobre romance, é sobre cuidado."
E continua:
"Decidi preparar um bolo como fazíamos aos domingos. A farinha voou, a manteiga derreteu nos meus dedos, e por um momento, eu ri. Rir sozinha é uma maneira bonita de voltar para casa."
A varanda seguia sendo seu templo. Cada fim de tarde, o céu tingia as paredes com um tom alaranjado que fazia tudo parecer mais suave. As flores do jardim espiavam curiosas. E o mundo desacelerava um pouco, só para que ela pudesse se reencontrar.
Na décima carta:
"Talvez eu nunca envie essas palavras. Talvez elas não precisem chegar a ninguém. O que importa é que, ao escrevê-las, algo em mim se cura. Descubro aos poucos que sou feita de mais do que esperas e ausências — sou feita de recomeços."
E foi assim, carta por carta, tarde por tarde, que ela se reconstruiu. Como quem borda uma manta com retalhos de memórias e afetos, ela se cobriu de si mesma.
Na última carta, escrita ao entardecer de uma quinta-feira qualquer, ela enfim assinava:
"Com amor, para mim mesma. Porque eu mereço voltar."
Dobrou o papel com cuidado, colocou dentro de um envelope azul e deixou sobre a mesa da varanda. O vento levou um fio de cabelo seu junto com o cheiro de chá E ela sorriu, como quem finalmente se encontra após uma longa caminhada.
Naquela tarde, a varanda não foi apenas um lugar de descanso, mas o ponto de reencontro entre uma mulher e sua própria alma.
E o mundo, silenciosamente, respirou com ela.
Epílogo
Meses depois, numa tarde fria, uma moça encontrou a caixa de cartas. Era sua sobrinha, que viera visitar a casa da tia após a sua partida. Leu cada palavra com lágrimas nos olhos. Percebeu que aquela mulher que ela sempre admirou havia sido, ao mesmo tempo, sua própria musa, confidente e redenção.
A sobrinha então se sentou na mesma cadeira da varanda e, com uma folha em branco à sua frente, começou a escrever sua primeira carta:
"Hoje me encontrei contigo nas entrelinhas. E descobri que também posso me reencontrar em mim. Obrigada por me ensinar a voltar."
E o ciclo se repetiu, como o vento entre as folhas, como a xícara de chá esquecida na mesa, como tudo aquilo que permanece mesmo depois do fim.
Jamie Schröder nasceu em 2009 e desde cedo encontrou na escrita uma forma de existir por inteiro. Poeta, contista e apaixonada por tardes silenciosas, ela escreve sobre o amor, a perda e o reencontro. Participa de projetos literários e mantém um blog chamado "Cartas de Jamie", onde compartilha suas criações. Acredita que palavras têm o poder de curar e transformar, e busca tocar corações com sua prosa sensível. Além da escri-ta, dedica-se à pintura e à criação de arte digital. Publica aqui um de seus contos que emergem do cotidiano com a delicadeza de quem observa o mundo pelas frestas da alma. Contato: (53) 981123049.
*Nota do Blog:
Perdoem mas não consigo conter-me diante deste texto! Publiquei uma crítica chamada "Do Corno de Suassuna ao Chá de Prosa na Varanda", sobre este texto que vocês acabam de ler! Há pérolas literárias que calam fundo. Se eu puder recomendar algo a você, caro leitor, será: LEIA NOVAMENTE. Já li pelo menos cinquenta vezes, e cada vez, há algo novo, surpreendente. Um texto que tem várias camadas. Não se limita às palavras. Parece que cada letra fora colocada, depois de cuidadoso estudo, de modo que, ao investigar a palavra formada, descobre-se um novo significado no contexto de cada vez que relemos.
Se tu leres novamente, certamente encontrará estas pérolas... junto com tantas outras. Mas esta eu, administrador do blog, ofereço-te!:
"... como se soubesse que você não está aqui para me ver dançar sob ela..."
"Em qual esquina da pressa me esqueci de ser leve?"
"Talvez, se eu me ouvir com carinho, eu volte a ser inteira."
"Rir sozinha é uma maneira bonita de voltar para casa."
"Descubro aos poucos que sou feita de mais do que esperas e ausências — sou feita de recomeços."
"Como quem borda uma manta com retalhos de memórias e afetos, ela se cobriu de si mesma."
"Hoje me encontrei contigo nas entrelinhas." Obrigado, Jamie Schröder, por dar-nos tantas entrelinhas para que possamos procurar a nós mesmos.
Luís Augusto Menna Barreto




"Rir sozinha é uma maneira bonita de voltar para casa."
É preciso mais???