top of page

(Co)Incidências

(Co)Incidências
(Co)Incidências

Elô havia acordado atrasada, o que era raro, naquela manhã chuvosa típica dos janeiros de Belém do Pará. O pequeno despertador à pilha comprado na loja de “1,99”, parara de funcionar. Funcionara por mais de seis meses. Mas finalmente, a pilha acabou. Ela fez tudo correndo naquela manhã. Mas, quando desceu as escadas do pequeno prédio sem elevador onde morava, notou que esquecera o guarda-chuva. 

Praguejou internamente, repreendeu-se e teve de subir correndo as escadas, pegar o guarda-chuva e finalmente foi para o ponto do ônibus. Os dias de chuva eram os piores no ponto do ônibus, porque não havia cobertura e as pessoas com guarda-chuvas abertos atrapalhavam a visão. E o trânsito muito mais carregado por conta da chuva, fazia com que alguns ônibus queimassem a parada. Era preciso estar atenta. 

— Tem horas?

Elô não havia prestado atenção, mas, em seguida, ouviu novamente:

— Tem horas?

Uma senhora bem velhinha sorridente, perguntou-lhe as horas. Elô não tinha relógio de pulso e, então, trocou o guarda-chuva de mão e enfiou a mão na pequena bolsa para pegar o aparelho celular para ver as horas e responder. 

Enquanto guardava o celular, viu seu ônibus, que parou sem que ela visse, retomar a velocidade. Estendera o braço sem sucesso. 

Quando finalmente conseguiu entrar em um ônibus e depois de um trajeto de 20 minutos em pé, conseguiu descer, tentou atravessar a rua fora da faixa de pedestres, mas teve de recuar por conta do tráfego e acabou perdendo mais tempo do que se fosse diretamente à faixa de pedestres. Depois de atravessar, bastaria andar mais 50 metros, dobrar a esquina e a loja de materiais de construção onde trabalhava, estaria logo ali. 

Dobrando a esquina de cabeça baixa e guarda-chuva em punho, esbarrou ou sofreu um esbarrão por um homem que vinha sem guarda-chuva, no sentido contrário. Elô caiu e torceu o tornozelo. O homem que a fizera cair preocupou-se, e levou Elô primeiro até uma farmácia, depois no atendimento de urgência da Santa Casa. 

Elô perdeu o emprego. 

Roberto acordou feliz, porque seria seu último dia longe de seu estado natal no sul do pais, para onde estava retornando depois de oito meses gerenciando a implantação de uma filial da empresa em que trabalhava. Entregaria o apartamento e embarcaria no vôo das 13 horas rumo à capital gaúcha. Havia arrumado as duas malas na noite anterior. Planejou acordar cedo, tomar o último café na padaria Santa Clara vendo o movimento dos carros pela avenida Gentil Bittencourt, lendo pela última vez o jornal Amazônia. 

O relógio despertou-o pontualmente. Arrumou-se como planejado e, quando foi sair, aconteceu algo simplesmente imponderável: quebrou a chave na fechadura da porta, pelo lado de fora. Por que diabos, ele tentara dar uma terceira volta na chave, se há oito meses fechava a porta com apenas duas voltas na chave? Praguejou algum tempo, mas decidiu que precisaria encontrar um chaveiro para resolver a situação. 

Depois de algum tempo, conseguiu, por um valor exorbitante, que o chaveiro fosse até o local. Examinada a fechadura, depois de retira-la, o chaveiro falou para Roberto que não seria possível aproveita-la. A força empregada na tentativa de um terceiro giro da chave, causou mais dano do que poderia ser reparado pelo chaveiro. Já eram quase 10h da manhã. A solução menos demorada, seria comprar uma fechadura nova e substituir. 

Foi então que Roberto saiu às pressas, tendo ficado no local o chaveiro, esperando que Roberto voltasse com a fechadura depois de compra-la na loja de materiais de construção indicada pelo chaveiro. 

Na pressa, ao dobrar a esquina, Roberto esbarrou em uma moça desajeitada que caiu e ficou um instante gemendo. 

Roberto queria apenas ir embora, mas não poderia deixar a moça ali no chão. 

Roberto não viajou naquele dia.

Muitos anos mais tarde, enquanto Elô e Roberto estavam passeando de mãos dadas, como faziam há mais de trinta anos, cuidando no neto que corria nos caminhos do Bosque dos Buritis em Goiânia onde moravam, ela distraidamente sorria satisfeita com a vida que levara, com o amor único que tivera, que durara a vida inteira e do qual ainda desfrutava, e bendizia todas as coisas que deram errado naquela distante manhã em que torcera o pé.

Roberto, segurando a mão da mulher para quem entregou seu coração para toda a vida, gostava de pensar o quanto ficara desnecessariamente aflito quando as coisas começaram a dar

errado naquela manhã em Belém do Pará, quando literalmente esbarrara no amor de sua vida.

Uns chamariam de destino.

Outros, de acaso.

Alguns chamariam de amor.


Luís Augusto Menna Barreto

15.2.2019

Comentários


bottom of page